Contra a morte do futebol


Que o capitalismo tenha se apropriado do futebol e abusado descaradamente de sua mitologia e de seus ritos, pouca coisa diz contra o futebol. Incrivelmente mais notável é a sutiliza do drible sofrido pelas pretensões mercantilizadoras daquele sistema, quando seu vampirismo se dirige a esvaziar as veias do nosso esporte.
Por mais debelado e maltratado, vendido e atraiçoado, o futebol insiste em fascinar – e não se trata, aqui, do mero encantamento rasteiro e humilhante provocado por uma cultura do consumo; não se trata do encantamento histérico de meninas por portes atléticos, de marmanjos por marcas esportivas (ou vice-versa); tal sorte rasa de fascínio é provocada pelo parasita, não pelo hospedeiro.
Refiro-me, antes, ao fascínio provocado pelo jogo em si.
O dramaturgo Nelson Rodrigues, que tinha o péssimo hábito de torcer pelo Fluminense, não foi culpado de exagero quando afirmou que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana.” Basta afiar ligeiramente os olhos para notar no jogo de futebol uma improvável encenação do drama humano, com seus momentos de elevada poesia contrastados com a mediocridade e com a mais horrenda baixeza.
A inteligência verbal de Hamlet desconcerta seus interlocutores com uma espécie de tresloucada lucidez, de confusão geométrica, que na história registrada do futebol tem seu par em um dos gols que Pelé não fez. Por outro lado, não é raro topar em campo com cenas quase tão atrozes quanto as deTitus Andronicus – para não poupar-lhes de um exemplo, recordo o episódio envolvendo o goleiro chileno Rojas, em um Brasil vs Chile pelas Eliminatórias da Copa de 90, onde o arqueiro simulou ter sido atingido por um rojão, movido por intenções bastante duvidosas (a atrocidade do episódio em questão marcou indelevelmente minha infância).
Talvez o elemento mais fascinante do jogo de futebol seja exatamente aquele seu componente mais subversivo: sua incontornável contingência, tão propalada no famoso ditado da caixinha de surpresas. A extensão do campo e sua estrutura natural e acidentada, uma impudica abertura a múltiplas interpretações, o tempo que corre tão implacavelmente como na vida, o uso dos pés e a correlata restrição do uso das mãos, a constituição visceralmente fugidia da bola, a precariedade da posse da bola, são fatores que, conjugados, dão ao futebol essa tonalidade insuportavelmente instável – instável demais para lhe permitir entrada no interior de lógicas da performance[i].
Nossa torcida – e nossa torcida mais fervorosa – é contra aqueles que, em nome da lógica do desempenho, querem impor ao futebol estádios cobertos aveludados com grama sintética, replayspara os árbitros decidirem com mais conforto sobre certo lance duvidoso, entre outras alucinações congêneres. É contra a morte do futebol e pela sutiliza e precariedade de seus dribles, que tem, pelo menos por enquanto, garantido sua cabeça.

[i] Isso deve explicar, pelo menos em parte, o fato do futebol (mesmo após sérias intervenções cirúrgicas) não despertar grande interesse nos norte-americanos.

Excelente produção do cruzeirense Alysson Amorim no seu blog. Leiam sem restrições: www.amarelofosco.com

2 comentários:

"George Best" disse...

Bom, por isso que curto o futebol desde sua invenção até mediados anos 80, porque o resto se converteu num circo capitalista deplorável. Ainda bem, que temos muito rolo de filme para reviver os verdadeiros anos dourados do futebol, porque se isto segue assim, vão matar o futebol. A bola, já mataram, porque esse Jabulani é um balão de praia e voleibol.

Dark Howard disse...

É isso ai Will, mesmo o futebol hoje sendo um negócio ainda fascina, principalmente ver o Palmeiras jogar.

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